Morri em Santa Maria ontem. Quem não morreu? Morri aqui, na minha casa, em frente a TV, agarrada a uma almofada.
Morri com cada um daqueles pais. Foi-se ali, um pouco dos meus filhos também, em uma solidariedade involuntária, simplesmente, por imaginar que aquela dor poderia ter sido minha.
Uma nuvem de fumaça negra arrancou para sempre páginas de centenas de vidas, sufocando o futuro de quem ficou. Todos seguirão avulsos.
Depois de horas de terror, o fogo foi apagado, a fumaça foi se dissipando, mas a morte se instalou com sua implacável eternidade. Vidas corrompidas.
E continuei morrendo ao ver os olhos desesperados de um avô, ao lado do filho que buscava pelo filho...
E continuei morrendo ao lado daquela mãe que esfregava compulsivamente uma mão na outra segurando um terço entre os dedos.
E continuei morrendo porque tenho filhos que tantas vezes demoram a chegar em casa.
E continuei morrendo ao lembrar que a primeira coisa que faço ao entrar em qualquer ambiente fechado é tentar localizar a saída de emergência.
E continuei morrendo pelas vezes que dizia aos meus filhos que fizessem o mesmo e ficassem sempre o mais próximo possível das portas de saídas. Mas, será que eles, como tantos outros ficam perto do palco, embaixo da banda? Talvez fiquem... Perdi a coragem de perguntá-los sobre isso.
Morri de vergonha porque estava sofrendo por um engano meu, enquanto pais perdiam pedaços seus.
Morri de vergonha porque há poucos dias atrás eu chorei por uma simples viagem desfeita...
Morri de vergonha pelo tanto que acalentei abraçar um corpo recém-amado enquanto pais buscavam reconhecer entre os mortos, corpos que geraram, alimentaram, embalaram, acariciaram, amaram desde sempre e para sempre...
Morri pelos pais que não poderão mais comemorar porque seus filhos passaram no vestibular.
Que não irão dançar com eles, a valsa em suas formaturas.
Que não segurarão netos.
Na dor dilacerante de entranhas desfeitas que assisti nesse domingo, senti vergonha das minhas pequenas dores, e nesse exato momento, elas perderam o sentido, e se desfizeram.
Apesar do sofrimento que une todos aqueles pais de Santa Maria, creio que haverá diferença em cada dor sentida - existirão aqueles pais (divorciados ou não, ricos e pobres, desempregados) que guardam vídeos de momentos protagonizados ao lado dos filhos que morreram - momentos de sorrisos largos, brincadeiras, demonstrações de amor, abraços espontâneos de quem conduziu a vida com pequenos gestos de afeto e outros que terão poucos sorrisos para guardar.
Porque quando a presença vira ausência o que sustenta são as lembranças do que foi e, quando os significados tocam a alma (de quem se foi e de quem ficou), têm o poder de ressignificar o que poderia ter sido, imortalizando sentimentos e sensações para toda a eternidade.
A vida é apenas um sopro, somos tanto e tão pouco... a dor que bate lá, pode sem aviso, bater aqui.
Minha solidariedade e compaixão por cada um dos corações desses pais que foram mortos, e ainda assim, precisarão continuar vivos...