O dia amanheceu noite. Nuvens carregadas de chuva tanto quanto eu de lágrimas. Mas não choramos, nem eu, nem a nuvem. Não deu tempo de espreguiçar (há meses não tenho esse momento gostoso, por falta de gosto). Desde que vi meu mundo ser drasticamente reduzido, não sei se durmo ou cochilo. Acordo mais cansada que deitei. Imaginei as 24 hs que teria pela frente e elas me pareceram insuficientes para tanta vida que urgia dentro da minha falta de vida. Estágio às 7 da manhã. Acorda o filho mais velho para deitar-se com a caçula para que não se assustasse ao acordar sem ter minha presença em casa. Basta de sustos para ela. Conta de luz para pagar antes das 10 da manhã. O filho liga preciso ir trabalhar, mãe. Corro para casa, ela pede leite. Não tem nem uma caixinha! Corro no mercado. Preciso ir ao banco. E quem disse que o tal dos gêmeos Zack e Cody me deixam a chance de convencê-la a ir comigo? Deixo-a só em frente a TV. Nunca fiz isso. Queria ter asas para tantas coisas ultimamente, mas nesse momento só para ir ao banco já estava bom. Uma montanha de roupa para lavar. Minha ajudante de mais de 20 anos talvez não volte mais. Onde está o sabão em pó? Não encontro em canto nenhum. "Mãe, o Hugo fez cocô em cima do sofá"( Hugo é o cachorro). Volto ao mercado. Coloco as roupas na máquina. Meu estômago se contorce de tanta dor. Me dei conta que não comi pela manhã. Antibióticos me detonaram. Não dá para "encarar" comida de restaurante, portanto: cozinha! E o cheque? Não acredito! Esqueci, preciso resolver isso. Sinceramente nem imagino o que fazer. Deixar feijão cozinhando com uma criança sozinha na sala ao lado? Nem pensar. Minha filha, por favor, vamos comigo é rapidinho. Nem pensar. Desligo o fogão. Em 20 minutos estou de volta. Retorno o feijão ao fogo. E o dever de casa? Me distraí. Nova luta. Dever pronto. Um relatório de estágio precisa ser entregue até às 14 hs. Vou conseguir. Respira fundo...
Almoço na mesa, merenda arrumada, uniforme limpo. Trânsito parado. Acidente de carro. Perdemos o ônibus escolar. Ok. Respira fundo de novo. Engarrafamento e meia hora depois, estou de volta. Cozinha um caos. Tiro roupas da máquina. Esqueci o relatório! Às 14hs e 10 min entro no site da faculdade para enviá-lo "prazo limite ultrapassado". Ok. Perdi mais essa. Dia continua escuro, a tempestade não cai. Caio eu em prantos. Breve pranto. Tenho que depositar o tal cheque no banco. E lá vou eu. Fila.Chego em casa e percebo de uma forma singular que eu posso. Independente de muitas coisas e pessoas, eu posso. Não consegui tudo - não consegui consertar o varal e nem achei quem o fizesse, não consegui forrar com lençol a minha cama porque meus rins ainda "gritam" de dor e não há ninguém por perto a quem pedir que faça por mim o simples ato de forrar a minha cama. Mas só a minha tentativa em toda essa nova luta já é uma conquista. Olho em volta e em meio a tanta bagunça que ainda não consegui arrumar, deparo-me com restos. Não refiro-me aos fragmentos de uma história. Refiro-me a restos, a parte que não valeu à pena e que tortura e precisa ser queimada (afinal, raspas e restos não me interessam). No mais, vejo vida me aguardando para ser vivida.