O blogger é atualizado de acordo com as batidas do meu coração. É um prazer tê-los comigo.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Amar


Ela era uma mocinha. Trabalhava no restaurante da tia. Já era noite e ela estava atrasada. A tia estava preocupada, porque suspeitava que ela estivesse com um certo moço que freqüentava o restaurante. Onde estariam? Fazendo o que?
Estes estavam na praia deserta sob o céu estrelado. Tudo era silêncio, a luz da lua refletida no mar, a voz distante das pessoas, o murmúrio das ondas mansas que lhe molhavam os pés. Distantes um do outro, não se tocavam. Apenas se olhavam. Ele tinha nas mãos um livro de poemas de amor de Pablo Neruda. Abriu o livro e começou a ler. Ela parou e não se mexeu até que a leitura terminasse.
Já era tarde quando ela chegou. O restaurante estava vazio. Entrou como se estivesse em transe - andava sonambulicamente, sem se dar conta da presença da tia.
- Onde você esteve? - a tia lhe perguntou com severidade.
- Na praia - ela respondeu sem acordar do transe.
A tia alvoroçou. Praia, lugar solitário, com um moço... E agora esse jeito sonambúlico, nunca visto. Coisa de muito grave deveria ter acontecido. E a imaginação da tia começou a ver cenas de nudez e amor carnal na areia, sob a luz do luar.
- O que foi que ele lhe fez? - ela perguntou quase gritando.
- Ele me leu um poema - a moça respondeu num sussurro calmo.
Aliviada das suas fantasias carnais, a tia se deu conta de que uma coisa muito mais grave acontecera. E com um profundo suspiro falou:
Leu-lhe um poema... Então você está perdida...
A tia conhecia os segredos do amor. O amor começa com a poesia. O corpo é um instrumento. A poesia é a música.

O que é amar além de verbo transitivo direto (indireto na poesia de Mário de Andrade)? O mundo inteiro a seus pés. Séculos tentando definir o indefinível, intocável, inefável - sufixos "in", pois é sempre mais fácil negar o que não se consegue explicar.  Milhões de poetas, conhecidos ou não, falam sobre ele. E quem é ele? Para Camões, lá no séc. XVI,  é um fogo que arde sem se ver.  
Encontro-o na pergunta feita por Santo Agostinho "O que é que amo quanto te amo?"


Nasci para ti antes de haver o mundo.
Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa...


O poema de Fernando Pessoa traduz o que sinto (mas não explico) - o amor nasce em um tempo anterior ao encontro. O ser humano segue sua trajetória esperando o momento de dar vida ao que, mesmo inerte, sempre o habitou sendo o doce objetivo de sua jornada (mesmos para os mais endurecidos). E aí explode esse “acontecer a dois” – com a inevitável ilusão de que a partir desse encontro, nasce a possibilidade de expurgar as próprias imperfeições e curar as feridas. Faz parte.

Em minhas décadas de abstrações buscando formar a minha concepção de amor, tive e tenho fases - às vezes estou para Shakespeare in Love, noutras estou para Nietzsche.
Acho delicioso acreditar nesse amor romântico regado a vinho e poesia. Aquele reconhecimento profundo do "a gente olha e se entende", aquela sincronicidade indispensável, tão bem retratada por um amigo - "língua solta, cérebro rápido e cuspir emoção é o grande lance, faz com que pensemos juntos... E não um de cada vez, e este é grande barato do diálogo verdadeiro". Amar humaniza as expectativas.
A vida fica mais pesada quando deixamos de sonhar com esse amor indelével. 

Mas e quando um dos dois é invadido por um choque de realidade e percebe que aquela cumplicidade só existia na imaginação, que a relação tão especial, era mentira, que os projetos eram falsos, que aquilo que os sustentava era uma camada fina que escondia a escuridão que não se queria ver?  
Momento do fim, onde você deseja não ter conhecido o amor, para não ter que acolher essa dor. Momento onde coisas comuns, como tirar um porta-retrato da estante, torna-se punhal envenenando as cenas do que se viveu e destruindo o que ainda se esperava viver. 

Às vezes o sonho do amor vem, baixa das nuvens em fogo e pousa aos teus pés um candelabro cintilante. Dura uma tarde? Uma semana? Um mês? Pode durar um ano, dois até, desde que as dificuldades sejam de proporção suficiente para manter vivo o desafio e não tão duras que acovardem os amantes. Para isso, o fundamental é saber que tudo vai acabar. O verdadeiro amor é suicida. O amor, para atingir a ignição máxima, a entrega total, deve estar condenado: a consciência da precariedade da relação possibilita mergulhar nela de corpo e alma, vivê-la enquanto morre e morrê-la enquanto vive como numa desvairada montanha-russa, até que, de repente, acaba. E é necessário que acabe como começou, de golpe, cortado rente na carne, entre soluços, querendo e não querendo que acabe, pois o espírito humano não comporta tanta realidade, como falou um poeta maior. E enxugados os olhos, aberta a janela, lá estão as mesmas nuvens rolando lentas e sem barulho pelo céu deserto de anjos.
O alívio se confunde com o vazio, e você agora prefere morrer. A barra é pesada.
O verdadeiro amor é suicida como diz Ferreira Goulart? Às vezes acho que sim... Parece que tem prazo de validade. Noutras vezes simplesmente acredito no para sempre, no encontro de almas gêmeas. Quando é que
penso de um jeito e quando é que penso do outro? Nem imagino.
Para proteger-se dessa dor, há de privar-se da delícia de viver o amor. 
Vale à pena, ou vale o risco?
Também não sei dizer. Sempre me joguei, de costas, sem a mínima proteção. Vivi pouquíssimos amores, os que foram de mentira, por si só se desvaneceram, como poeira ao vento, não me deixaram nada, pois o que ficou já estava destinado a mim. Os outros foram intensos e de verdade. Tive tudo o que esperei deles, mas tive também o que não esperei e não gostei do que vi.
Assim (nesse momento) vou de Vinícius de Morais, acreditando que o amor é infinito enquanto dure.


7 comentários:

LUIZ disse...

Olá Marcela! Sempre acompanho de longe se blog. Mas hoje não resisti...você se superou! Muito lindo sua visão totalmente relativa de amar, pois acho que é assim mesmo que as coisas são. Parabéns. Do alto dos meus 50 anos, encontrei alguém que me surpreenda. Sucesso para você.

Liliane disse...

Ei, Marcela. Amar é assim, uma oportunidade de ver a vida por uma lente diferente.Uma oportunidade da vida. Amar por um dia , dois meses, seis meses, um ano ou anos até...até que recomeçe, mesmo que seja no acordar e começar de novo.Parabéns, gostei do seu texto e, principalmente da tradução sobre a efemeridade do amor, Beijos!

Pablo disse...

Boa noite Marcela, porque você faz minhas noites melhores quando leio um texto seu.Principalmente quando mexe com todos os meus sentidos, como esse último. Parabéns. Você realmente escreve muito! E sabe das coisas. Desejo tudo de melhor para você. Abraços

Anônimo disse...

Vc pulou a parte q diz..."q não seja imortal, posto q é chama".Sem essa chama, nada existe. A chama se alimenta da vida, é a luz do caminho, dos planos, dos horizontes. Assim é o amor, entre outras tantas coisas. Um só momento, uma saudade, podem ser eternos.
Vc se superou menina, parabéns!!!!

Cláudia disse...

Adorei!!!! Mas fiquei melancolica...com uma dor estranha...vc escreve mto bem e é mais inteligente, eu sempre soube, mas o conteúdo é pesado para mim...ainda não sei os reais motivos mas vou pensar melhor para te responder. De qualquer forma, 2 coisas: tou orgulhosa e apesar de tudo, eu nunca te deixei só. Se calhar não fiz a companhia que vc esperava de mim.
Com amor

Gustavo disse...

Pessoas dificilmente conseguem me colocar em um estado meditativo. Seus texto me deixam boquiabertos do quanto você escreve bem. Mas esse! Estou meditando desde a meia noite. Nunca raciocinei o amor dessa forma, acho que nunca raciocinei o amor. Agora vem esse texto e me tira os dois pés do chão. Do alto dos meus 45 anos, vou precisar rever tudo. O que é amar para mim? Nunca soube. Você é muito mais do que uma escritora, você é uma bruxinha do bem e que me faz muito bem. Parabéns para você!

Anônimo disse...

Ahhhh Marcelita...no seu blog vc foi pra corda bamba sem rede, foi falar de amor...ah o amor. De todas as canções, de todos os livros e poemas, das histórias e imagens do mundo q falam do amor, vc ainda conseguiu falar do amor. danada vc !Ah Marcela..o amor. Tantos são os amores, né mesmo? Tão sentidos e vividos, tão sofridos, tão vivos na alma. Acho q a pior coisa do amor é parar de amar...desamar.

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